quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

A viagem


 

Catarina sonha ser melhor. Quem sabe, outra. Naquela manhã acordou desgastada, e com sensação de que as suas dores não desapareceriam nunca. Cansada dos pequenos e dos grandes dissabores desejou voltar a adormecer e sonhar. Sonhar com dias felizes, sem as dores físicas que a amarram a uma realidade que não deseja. Como seria bom poder ser transportada para um outro lugar, para uma outra realidade. Ser outra, se ela mesma não tem solução. Voltou para a maciez dos lençois e fechou os olhos. Resigna-se perante a impotência do que se apresenta facto. Abre os olhos. Observa impassível o branco afetado das paredes do seu quarto, e volta a pensar no que a perturba. Cansa-se novamente. Respira fundo e fecha os olhos. Anseia por um sono, que ainda que breve, a devolva a um mundo onde possa ser livre. Pensar-se, desmotiva-a a continuar. Adormece por fim, e não regressa.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Tenho fome



Segunda-feira. Saí do consultório do meu Osteopata. Um cavalheiro que descobri do nada no meio de uma crise brutal de dores de costas, depois de estupidamente ter partido duas costelas. Um cavalheiro que a pouco e pouco tem resolvido as minhas dores, quando nenhum ortopedista me trazia esperanças de melhoras. Mas bom, continuando. Era já hora de almoço. Atravessei a 5 de Outubro em direção à paragem do 83, de volta ao trabalho. Esperei. Chegando finalmente o autocarro, entrei e sentei-me num dos bancos livres. Mais à frente, partilhava a viagem comigo e os restantes, uma família de cinco. Cigana, apercebi-me. Não com dificuldade, claro! Foi uma viagem curta. Ouvimos falar de crise e lamentamos a desgraça e a miséria alheias, mas nada nos pode elucidar mais e melhor do que o tom e as palavras de uma criança. O filho mais velho seguia mudo, num banco mais à frente. A restante família sentara-se naqueles bancos em parelhas de dois lugares virados uns para os outros, normalmente com as indicações de cedência de lugar para os que mais precisam, idosos, crianças ou mulheres grávidas, e que a meu ver, dentro em breve, deverá incluir um outro grupo, o dos que têm fome e que na ausência de forças, precisam de um lugar. De costas para o sentido da marcha seguia o progenitor. Falava alto e estava visível ou aparentemente bem disposto. Lia uma minúscula compilação de qualquer coisa, que não sei identificar e interrompeu a leitura para comentar com um dos filhos: - Calminha e não chateiem a vossa avó, para ela não se aborrecer e nos mandar embora quando lá chegarmos! À sua frente, sentara-se o filho do meio. Cinco anitos calculo e tão mudo quanto o irmão mais velho. Olhos tristes e vazios. Imundo e sem vida. Sem queixas, portanto. Ao lado sentara-se a mãe com a filha mais nova ao colo. Ambas igualmente imundas. A menina todavia, transpirava uma aura doentia e desde que entrei até que saí, lamuriou: - Tenho fooooome! Tenho fooooome! Tenho fooooome! Tenho foooome! Tenho foooome! Tenho foooome! Tenho fooooome! A mãe nada disse, desde que entrei até que saí. Mas nunca repreendeu a menina que se queixava ininterruptamente. Sei sim, que na ausência das palavras, a mantinha no colo e a acariciava amiúde. Recordo-me de tudo o que me passou pela cabeça e do que senti. Tristeza, angústia, a ideia assustadora de ver os meus próprios filhos em semelhante situação, de me sentir uma privilegiada por poder ter comida na mesa, mas sobretudo e desgraçadamente, a vontade urgente de sair porta fora, para não ouvir, para não sentir, confrontada com a minha impotência perante um facto que certamente se multiplica em larga escala por esse país fora. Perguntam-se, esta criatura (refiro-me a mim) deve ter visto muito pouco ou nada das misérias do mundo, para se sensibilizar com tão pouco! Pode até ser. Mas ainda ouço as palavras daquela criança. E sei que quando me apiei, senti vazio. E senti vergonha. De mim.